terça-feira, 11 de maio de 2010

A lenda da Pedra do Banquete (monólogo) - 2004


Projeto Rota Cultural (Empresa MBR)

No ano de 2004 fui convidado pela produção do Projeto Rota Cultural para realizar o monólogo "A lenda da Pedra do Banquete" , que fala sobre os escravos, liderados por Pai João, da Fazenda do Barão do Sahy, localizada no município de Mangaratiba, Rio de Janeiro. Junto a mim, dividindo o palco, estavam remanescentes quilombolas da Marambaia do grupo cultural "Filhos da Marambaia", fazendo o pano de fundo da cena e a sonorização com seus atabaques e berimbaus. O dia foi dedicado a cultura musical, teatral e dança, em praça pública.

Lenda da Pedra do Banquete

Arthur Angrense Pires
(Prefeito de Mangaratiba 1931/1934)


Diz a lenda que, pai João, sentado na laje lisa, ao extenso da praia, olhava vagamente o mar imensamente verde e calmo e ruminava a idéia fixa que lhe assaltara, há muitos meses, e que lhe não deixava sequer um momento de sossego.

Seu senhor embarcara na canoa de 18 pipas, de casco seguro e grande, capaz de levar ao porto da Corte aquele carregamento de aguardente.
Dessa feita, a “Flor dos Mares” iria, porém, só até ao Abraão, levar o “Sinhô” e sua família, de volta ao Rio de Janeiro, e embarcar no “Marambaia” que ali fazia escala, vindo de Angra dos Reis.

O feitor seguira também na embarcação, sabujo que sempre fora do fazendeiro e dos de sua grei.
Pai João acreditava que tinha chegado o momento. Olhava vagamente a Marambaia, cuja silhueta se esfumava no horizonte, lá longe, e lembrava a sua terra, a ardente Angola que Sinhozinho lhe ensinara que ficava muito além daquela ilha e restinga onde pontilhava como um régulo o Capitão Mata-Gente, homem temido cuja alcunha lhe assentava como uma luva... Ali sofriam e morriam, aos magotes, seus infelizes conterrâneos. Já se assinara a proibição do tráfico de escravos, mas, ainda assim, a negra mercadoria chegava à Marambaia em barcos de quais seriam então aprisionados pelas naves da esquadra inglesa, audaciosamente policiando as nossas águas territoriais.
E o seu pensamento voltava à sua terra natal, aos seus dias de infância descuidada, seu aprisionamento, seu embarque no cais de Luanda – onde o Bispo sentado na tradicional Cadeira de Pedra – abençoara o lote de escravos novos, seu embarque na caravela “Lusitana”, a travessia atlântica de seis meses, onde trinta e cinco por cento de seus companheiros sucumbiram de frio e fome, sua chegada à Marambaia, sua venda em leilão em Mangaratiba, no trapiche do Morais e enfim, sua instalação na Fazenda do Sahy.

Aí encontra largo tempo de sossego. Casara-se com uma índia, também escrava, e desse enlace tivera cinco filhos. Agora já possuía uma neta-moça-cafusa de 18 primaveras e sem maior enlevo. Maria! Que amor!

Há dois anos, porém, um feitor novo fora admitido na fazenda, já que o antigo partira desta para melhor. Era “seu” Manoel, homem de mau gênio e de índole perversa. Por qualquer motivo e até sem motivo algum, os escravos sofriam os mais cruentos castigos. Muitos morreram no “tronco”, aos golpes do “bacalhau”. Dois de seus filhos tiveram esse destino. E agora “seu” Manoel não tirava os olhos de Maria e já lhe dissera que “assim que Sinhô viajasse ela iria morar com ele...”

Era a afronta máxima!

Às torturas físicas agüentara e como o mais velho dos 38 escravos da Fazenda do Sahy – sobre os quais sempre tivera ascendência absoluta – fizera os seus filhos e os seus tutelados suportá-las.
Mas, agora era demais! A revolta estava para estalar nas senzalas e não seria ele quem a iria sufocar.
De repente, pai João foi assaltado por aquele pensamento. Seria aquilo mesmo. Era o que merecia o feitor mau que sadicamente gozava as torturas de seus semelhantes.

E deu um assobio estridente. De imediato apresentou-se-lhe um negrinho ágil e forte. Pai João ordenou que o moleco fosse chamar à praia toda a população negra da fazenda. Quando todos estavam reunidos, pai João lhes falou:

- Meus filhos, seu Manoel não pode viver mais. Ele vai morrer! Vamos esperar, aqui na praia, a volta da “Flor dos Mares” e vamos executá-lo pelos mesmos crimes e maldade que ele cometeu. Quero todo o mundo aqui e com roupa de festa.
Mais uma hora de espera e a canoa apontava na Ponta da Guaíba. Pai João acelerou os preparativos. Dentro em pouco a “Flor dos Mares” aportou. Dela saltou lépido seu Manoel, de chicote nas mãos, como sempre fora de seu uso. E já ia gritar recriminando a reunião ali encontrada, quando dois pulsos fortes o agarraram pelos braços, forçando-o a sentar-se na pedra lisa, como num banco de réus, em cujo redor encontrava-se toda a escravaria.O homem estava lívido já que compreendera o perigo em que se encontrava.E pai João lhe falou:- Seu Manoel – você vai morrer! Você matou muitos dos nossos, sempre sem motivo importante. Você violou nossas mulheres e roubou nossos haveres. Agora você pensa em furtar Maria, a minha neta querida. Mas a sua hora chegou!
Todos concordaram com gritos e aplausos.Seu Manoel caiu de joelhos no chão pedindo perdão. Foi-lhe aconselhado que orasse a Deus! E então, atada uma corda ao seu pescoço e, na extremidade da corda, foi presa uma grande pedra. Embarcando novamente no “Flor dos Mares”, a canoa volveu até onde a profundidade alcançava trinta braças, e aí seu Manoel foi jogado sem dó nem piedade.Reunindo novamente seu povo, pai João ordenou que a adega da fazenda fosse arrombada e dela retirados vinhos e vitualhas que dariam para um batalhão. E todos seguiram para um grande penhasco perto da Casa Grande, e lá foram realizados os festejos comemorativos do feito. Muito foi bebido e comido do bom e do melhor. Depois se iniciou o batuque que se prolongou até alta madrugada.Muito tarde, pai João descera à vargem e voltara com grandes rodilhas de fino e resistente cipó. E ao alvorecer, mandou, de novo, que a escravaria se reunisse. E foi amarrado, braço a braço, pulso a pulso, com cipó – homens, mulheres e crianças.E à frente de todos – pai João se encaminhou para o abismo de fauces hiantes e de mais de cem metros de profundidade. E sem um protesto e até cantando e dançando – todos os escravos a ele se atiraram num protesto mudo e viril!Ninguém escapou. E a pedra que lá está, no Sahy, ficou conhecida como a “Pedra do Banquete” – esse último banquete macabro e que ainda faz doer a alma da gente, passados tantos anos, só em lembrar... E desde então, sopra no Sahy um vento furioso, destruindo tudo, revolvendo suas areias e terras, formando dunas como se fossem túmulos sem mortos. Esse vento parece dizer uma oração pelas almas dos sacrificados.

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